Três meses depois de terem sido acusados de injúria racial, a varejista de roupas Zara e o Shopping da Bahia fecharam um acordo extrajudicial com o estudante estrangeiro e negro Luiz Fernandes Júnior, 28, para que ele não leve um processo judicial adiante.
Nascido em Guiné-Bissau e morador de São Francisco do Conde, onde cursa mestrado na Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira), Fernandes registrou boletim de ocorrência policial após ser discriminado por uma atendente da loja e por um segurança do shopping em 28 de dezembro do ano passado. Na ocasião, ele foi acusado de ter furtado uma mochila que havia acabado de comprar por R$ 329.
Segundo o advogado de Fernandes, Thiago Thobias, o acordo foi celebrado no dia 7 de abril. "Em 22 anos atuando na defesa de vítimas de racismo, esse é um caso inédito pra mim por três motivos: é a primeira vez que eu vejo uma empresa tomar a iniciativa de fazer um acordo extrajudicial, realizar esse acordo em tempo recorde e ainda por cima indenizar a parte ofendida com um valor muito superior ao que a Justiça brasileira costuma arbitrar", declarou.
O termo de confidencialidade do acordo impede que as partes revelem o valor da indenização. À época do ocorrido, Thobias afirmou ao UOL que pediria R$ 1 milhão às empresas acusadas a título de "indenização civilizatória". Em entrevista ao UOL, Fernandes comentou o acordo.
“Uma notícia negativa como essa, espalhada pelo mundo, afeta a imagem e interfere nos lucros. Não ia sair barato, então eles tiveram que refletir e olhar para o valor humano", disse Luiz Fernandes Júnior.
Zara zerou Como parte do acordo, Luiz Fernandes Júnior se compromete a cessar qualquer ação individual contra as empresas. Mas a varejista o centro de compras continuam respondendo na esfera cível à ação coletiva proposta pela Educafro.
"É um processo por danos coletivos, pois entendemos que foram causados danos não somente aos indivíduos, mas a toda a comunidade negra", disse o diretor executivo da entidade, Frei David Santos.
A ação civil pública foi movida pela Educafro devido a outra acusação de discriminação racial praticada por funcionários de uma unidade da Zara em Fortaleza, em setembro de 2021. Na ocasião, a delegada Ana Paula Silva Santos Barroso denunciou ter sido impedida de entrar na loja sem justificativa. A Zara alegou que ela estava sem máscara e consumindo um sorvete. Ana Paula contestou a informação e argumentou que o gerente da loja atendeu antes dela outra cliente sem máscara.
O caso ganhou repercussão após o delegado-geral da Polícia Civil do Ceará, Sérgio Pereira dos Santos, descobrir que a loja anunciava o código "Zara zerou" pelo alto-falante para informar aos funcionários quando pessoas negras entravam no estabelecimento. Segundo ele, a informação foi dada em depoimento por uma ex-funcionária da Zara. A empresa negou a existência do código. Além do processo movido pela Educafro, a Zara responde a outra ação civil pública promovida pelo Coletivo Cidadania Antiracismo e Direitos Humanos, em nome do Coletivo de Advogados em Nome da Democracia e da Soeu Afrobrasileira.
Procurada pela reportagem do UOL para esclarecer por que firmou acordo com Fernandes e não com Ana Paula, a Zara declarou, por meio de sua assessoria de imprensa no Brasil, que não vai se manifestar sobre o assunto.
Já o Shopping da Bahia confirmou em nota "que os envolvidos no caso chegaram a um entendimento, mas este exige confidencialidade". "O Shopping da Bahia reitera seu papel de combater qualquer tipo de discriminação e mantém um trabalho contínuo de conscientização e reeducação de todos os colaboradores, dada a importância e a urgência desse tema", informou.
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Banzo
À época do ocorrido, Luiz Fernandes Júnior relatou que foi abordado no banheiro do Shopping da Bahia por um segurança que o acusou de ter roubado uma mochila. Mesmo comprovando que havia comprado o produto, foi levado de volta até a loja.
“Eu dizia que tinha como provar que paguei pela mochila, mas ele não queria saber. Disse que eu tinha roubado e foi ficando com o tom de voz cada vez mais agressivo. Senti que ele podia atirar em mim ali mesmo, dentro do banheiro, e depois justificar que eu tentei atacá-lo. Senti medo de morrer. Nem terminei o que eu estava fazendo, vesti minhas calças e sai para o corredor em busca de um lugar onde outras pessoas pudessem testemunhar o que estava acontecendo”.
O psiquiatra Lucas Mendes de Oliveira avaliou o quadro médico de Fernandes. Para resumir o estado de espírito inicial do paciente, ele usou a palavra "banzo", expressão utilizada para definir a apatia profunda que levava os negros africanos escravizados e transportados para terras distantes à inanição, à loucura e até mesmo ao suicídio.
Em um relatório, porém, Oliveira constatou que o estudante sofre de uma "síndrome depressiva atípica com sinais de estresse pós-traumatico". Ele atestou que havia "sintomas de síndrome depressiva, com importante componente de desatenção, desesperança e desvalia, considerando desistir de suas atividades acadêmicas e laborais", além de "insônia inicial grave, pensamento ruminativo com a sensação de revivência do episódio traumático, evitação de ambientes que rememorassem o evento (shopping ou lojas similares), prejuízo na memória, inapetência com perda de peso".
Desde o ocorrido, Fernandes não conseguiu retomar o mestrado na Unilab. A data de entrega da dissertação expirou e ele entrou com um recurso administrativo para abrir um prazo extra. "É difícil esquecer quando a gente é humilhado e destratado. É difícil esquecer que desfizeram da minha luta e do meu dinheiro suado que eu tinha economizado pra comprar ali", lamenta.
Para o psiquiatra Oliveira, o sofrimento causado pela injúria racial é comparável ao tipo de estresse pós-traumático vivenciado por comissárias de bordo. "Essas pessoas passam 10, 20 anos sendo obrigadas a manter a calma dos passageiros durante períodos de turbulências. Um dia, elas passam por uma turbulência maior e não conseguem mais voltar a voar porque esse evento, mais agudo, funcionou como um gatilho para as dezenas de traumas que elas tiveram de reprimir", explica.
Com a injúria racial, explica o especialista, não é diferente. Somente depois de um evento mais agudo é que o indivíduo percebe que foi vítima de uma série de infortúnios provocados não por sua própria responsabilidade, mas pelo preconceito alheio, diz Oliveira. Essa tomada de consciência, é um momento de muita dor e revolta e o trabalho do profissional de saúde mental é conduzir o paciente a um lugar de vítima, mas não de vitimização, continua o psiquiatra.
Para ele, a indenização financeira é fundamental no processo de cura. "Num país em que a gasolina custa R$ 8, reparação histórica é dinheiro no bolso. É uma reparação parcial, mas vai ajudar muito. O Luiz melhorou, mas ainda vai precisar de uma terapia de longo prazo".
Luiz não declara quanto ganhou, mas disse que pretende usar o dinheiro da indenização para reformar a casa onde residem seus irmãos Ivete, Antônio e Elvio nos arredores de Bissau, capital da Guiné-Bissau, na costa ocidental da África. "É a única coisa que eu penso que posso fazer para agradecer minha mãe, Maria Sábado, que partiu há 15 anos e nos deixou neste mundo como seus frutos", declarou Luiz, que tem mais nove irmãos por parte de pai.
O episódio reforçou na vítima um desejo que estava adormecido: resgatar o nome original de família, Abuk Masak di Makua, que ele e seus ancestrais da etnia manjaco tiveram de abandonar durante o processo de colonização portuguesa em Guiné Bissau para não perderem suas terras.
UOL