Recursos públicos que poderiam melhorar a educação básica em municípios pobres no interior do Brasil foram usados para custear compra de picapes, reforma de praças e de um parque de vaquejada, perfuração de poços, instalação de postes e asfaltamento de ruas.
Os desvios do dinheiro da educação para finalidades diversas somam pelo menos R$ 277,3 milhões.
Essa é mais uma irregularidade grave no uso de recursos da União pagos a municípios por meio de precatórios do antigo Fundef, hoje Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica).
A Folha de S.Paulo mostrou no domingo (13) que outros R$ 332 milhões da educação básica acabaram destinados a escritórios de advocacia, por meio de pagamentos ilegais de honorários.
Somadas as duas destinações ilegais do dinheiro, o desvio da educação básica chega a R$ 609 milhões. E esta quantia não corresponde a todo o tamanho do problema, uma vez que o TCU (Tribunal de Contas da União) auditou apenas parte dos recursos.
O tribunal já deu decisão cautelar para proibir o pagamento de aluguel de imóveis não vinculados à educação municipal e identificou destinos indevidos de recursos como para a previdência de servidores.
Auditores vêm detectando outros ralos para o dinheiro da educação básica, como a contratação de crédito junto a instituições financeiras, diante da perspectiva de recebimento dos precatórios. A remuneração a bancos varia de 10% a 20% do valor esperado do Fundeb.
A prática também é ilegal, segundo o TCU. O entendimento do tribunal, do Ministério Público e de decisões já tomadas por tribunais superiores é o de que, pela Constituição, o dinheiro do Fundeb deve ser destinado exclusivamente para a educação básica.
Municípios da Paraíba, da Bahia, do Pará e Piauí são recordistas em dar uma destinação indevida ao dinheiro da educação, conforme o TCU. Os desvios somam, respectivamente, R$ 164,2 milhões, R$ 39,5 milhões, R$ 28,4 milhões e R$ 28 milhões.
Os repasses dizem respeito a uma complementação da União ao antigo Fundef, hoje Fundeb, que é a principal fonte de financiamento da educação no Brasil. Uma decisão judicial, já sem possibilidade de recursos, obrigou a União a fazer novos aportes, diante de erros de cálculo detectados em ação na Justiça.
Um cálculo atualizado para 2017 mostrou que o passivo devido a governos e prefeituras chegava a R$ 95 bilhões. Mais de R$ 9 bilhões em precatórios (o reconhecimento oficial da dívida, pelo Estado) foram emitidos para os pagamentos.
As auditorias do TCU se concentraram em R$ 3,7 bilhões, pagos até 2018. Os auditores encontraram R$ 254,6 milhões destinados a advogados, contratados pelos municípios para tentar destravar o dinheiro, e R$ 277,3 milhões usados em finalidades distintas da educação básica. A Folha constatou que mais R$ 70 milhões custearam honorários ilegais em 2019 e 2020.
Entre os escritórios beneficiados está o do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), político com uma das maiores fortunas do país.
Conforme a Folha revelou, sua empresa foi condenado em primeira instância a devolver R$ 3,3 milhões aos cofres da Prefeitura de Jacobina, cidade de 80 mil habitantes no interior da Bahia. Além disso, o Ibaneis Advocacia e Consultoria atuou em outras ações ligadas às bilionárias verbas do Fundeb e é um dos principais parceiros do escritório João Azêdo e Brasileiro Sociedade de Advogados, líder em contratos para abocanhar fatias do fundo.
O que ocorreu com o dinheiro destinado a Alto Longá (PI), uma cidade de 14 mil habitantes, com uma das piores rendas per capita do país, exemplifica os apontamentos do TCU. Ainda antes de uma ação do MPF (Ministério Público Federal) para garantir os repasses complementares da União, o município contratou um escritório de advocacia para tentar assegurar o dinheiro.
A Justiça determinou o pagamento, com a emissão de precatórios de R$ 12 milhões. Escritórios de advocacia ficaram com mais de R$ 3 milhões desse valor.
“Não foi possível identificar qualquer registro documental dispondo sobre o meio pelo qual se deu a contratação do escritório de advocacia. Inexiste qualquer processo administrativo referente à tal contratação”, aponta a auditoria.
Em 2018, a gestão do atual prefeito, Henrique Saraiva (PSD), decidiu usar uma fatia do dinheiro, R$ 130 mil, para comprar uma picape L200 Triton Sport. O TCU entendeu que os recursos devem voltar aos cofres do Fundeb. Saraiva foi reeleito em novembro.
Segundo assessores do prefeito, o TCE (Tribunal de Contas do Estado) validou o plano de trabalho que previa a compra do veículo. A picape foi colocada a serviço da Secretaria de Educação, afirmam os assessores.
O TCU determinou a instauração de um processo de tomadas de contas especiais para buscar reaver os R$ 3 milhões pagos por Alto Longá aos escritórios de advocacia. A atual gestão do município diz que a responsabilidade por esses pagamentos é de administrações passadas. Ao todo, são mais de cem tomadas de contas especiais para reaver honorários pagos em 12 estados.
O dinheiro do Fundeb custeou outras compras de carros de luxo em cidades do Piauí, como uma Nissan Frontier (R$ 169,5 mil, valor pago em 2016) e uma Toyota Hilux (R$ 104,6 mil, pagos em 2015).
Os recursos da educação serviram ainda para locação de carros, terceirização de mão de obra e serviços advocatícios a sindicato de servidores públicos, segundo auditorias do TCU.
Os auditores encontraram ainda repasses a fundos municipais de saúde e assistência social e até mesmo para uma Câmara de Vereadores. Um mercado público municipal foi construído com dinheiro da educação básica.
Em agosto, o Congresso aprovou a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que torna o Fundeb permanente na Constituição, altera formato de distribuição e mais que dobra a participação da União no financiamento da educação básica. A regulamentação foi discutida neste mês por deputados e senadores.