Testemunhas de Jeová são investigadas sob suspeita de ocultar crimes sexuais

06 de março de 2020, 16:31

Mãos de mulheres que denunciaram abusos e assédios (Foto: Rubens Cavallari/Folhapress)

Seis vítimas relataram à Promotoria esquema de proteção a agressores; associação diz que vai ajudar autoridades

O Ministério Público de São Paulo investiga a associação religiosa Testemunhas de Jeová por suspeita de ter acobertado casos de abuso sexual, inclusive de crianças e de adolescentes, em suas congregações.

De acordo com a apuração da Promotoria, a organização teria constrangido vítimas a não denunciar os crimes. Por conta disso, afirma, muitos dos delitos já estariam prescritos.

Iniciado em setembro de 2019, o inquérito, que corre sob segredo judicial, tem como base o relato de seis pessoas que afirmam terem sofrido diversos abusos de natureza sexual e psicológica.

Um dos casos é o de E.G.L.B, de 37 anos. Aos 12 anos, ela era candidata ao batismo quando foi entrevistada por um ancião (nome dado aos membros experientes, que têm a função de supervisionar as congregações).

“O ancião começou falando sobre sexo”, disse. Logo depois, segundo o relato feito à Promotora, levantou-se e passou a apalpar os seios da garota. “Ele me disse, não precisa ficar com medo de mim, sou como um pai para você. Na sequência, abriu a calça e tirou o pênis.”

Meses depois, E.G.L.B e sua mãe decidiram relatar o caso a outros dois anciões. “Eles ficaram transtornados, mas acabaram por pedir que não falássemos nada para ninguém”, lembra. “Disseram que deveríamos deixar nas mãos de Jeová, que ele resolve tudo.”

Em documento enviado à Justiça, a promotora Celeste Leite dos Santos diz que a associação, sempre que sabia de alguma situação de abuso, afirmava que só poderia tomar providência caso houvesse confissão do autor ou se existissem duas testemunhas presenciais do crime.

Ela afirma também que as vítimas poderiam ser afastadas da organização se fizessem denúncias. Quando alguém é desassociado das Testemunhas de Jeová, diz a promotora na petição, “perde-se também o elo com os parentes” que integram a igreja.

A promotora diz que a investigação começou após ela ter sido procurada por uma das vítimas. “Precisava de ajuda porque foi ameaçada por estar denunciando”, diz. “Estava sendo intimidada, nos escreveu pedindo socorro.” 

Celeste é coordenadora de um projeto do Ministério Público paulista, o Avarc (Acolhimento de Vítimas, Análise e Resolução de Conflitos), que procura ter um olhar mais atento e humanizado às vítimas de crimes ocorridos no estado de São Paulo.

Religião criada no final do século 19 nos Estados Unidos, as Testemunhas de Jeová têm cerca de 1,4 milhão de adeptos no Brasil, de acordo com o IBGE de 2010. Seus fiéis acreditam que sua religião é a restauração do verdadeiro cristianismo.

Segundo o pesquisador Eduardo Góes de Castro, as Testemunhas de Jeová encaram a sua religião como um modo de vida, “sendo que todos os outros interesses, incluindo o emprego e a família, giram em torno de suas crenças”.

A associação defende uma vida moderada e a submissão das mulheres aos homens. Não aceita a transfusão de sangue e o serviço militar. As Testemunhas de Jeová dizem basear todo seu sistema de crenças e práticas na Bíblia.

Além do relato das vítimas, o Ministério Público colheu o depoimento de nove testemunhas, entre as quais alguns ex-anciões. Segundo essas testemunhas, a igreja registra todos os relatos de abuso e os arquiva nas congregações. Posteriormente, esses dados seriam repassados à sede da entidade, nos Estados Unidos.

Em razão de uma série de casos de abusos investigados no exterior, o comando mundial da organização teria ordenado, de acordo com o relato feito à Justiça, a destruição de todos os registros confidenciais de crimes.

Com base nesse receio, a Justiça determinou a realização de operações de busca e apreensão de documentos em 15 endereços da entidade, incluindo a sede, localizada no município de Cesário Lange, no interior de São Paulo.

No Salão do Reino [nome dado aos templos] do bairro da Liberdade, por exemplo, a polícia colheu cinco envelopes com supostas provas. Num deles, haveria informações sobre um ancião que teria molestado sexualmente suas filhas de 12 e 14 anos.

Em outro documento, haveria o relato de um fiel com “conduta desenfreada no serviço secular com várias mulheres”. De acordo com o Ministério Público, os dirigentes da associação podem ser denunciados se ficar provado que tiveram ciência de casos de crimes sexuais, que não informaram as autoridades e que permitiram seu prosseguimento.

À Justiça, a entidade afirmou que não há nenhuma prova de ilegalidade ou omissão de sua parte. “Pelo contrário, as provas juntadas nos autos pelo próprio Ministério Público indicam que a associação preocupa-se em proteger os menores em seu meio”, afirma.

Em petição apresentada ao Tribunal de Justiça, a entidade pediu a suspensão do inquérito. Declarou que nunca “houve qualquer orientação para encobrir tais casos ou tratá-los apenas internamente, como se houvesse um tribunal eclesial próprio”.

Disse também que nenhum documento apreendido pelos policiais tem relação com as supostas vítimas que procuraram o Ministério Público. “A busca serviu apenas para violar o sigilo eclesiástico, expor dados sensíveis de pessoas alheias às investigações e violar garantias constitucionais de uma entidade religiosa e de seus fiéis.”

O Tribunal de Justiça não aceitou o pedido. Em decisão no final de janeiro, afirmou que a investigação contém indícios bastante relevantes quanto à prática de crimes sexuais. “Não há motivo para suspender o procedimento.”

Assim como as Testemunhas de Jeová, a Igreja Católica é alvo de acusações de abuso sexual de crianças e de jovens por padres e religiosos nos últimos 20 anos, em diversos países do mundo.

O papa Francisco ordenou no mês de dezembro mudanças na forma como a igreja lida com os episódios, eliminando a regra do sigilo pontifício, usada até então para manter casos em segredo. Com a alteração, a igreja pode passar a enviar para autoridades civis documentos e provas relacionados a suspeitas de abusos sexuais.

No Brasil, outro caso de crimes sexuais envolvendo religiosos ocorreu em Goiás, com o médium João Teixeira de Faria, o João de Deus, condenado a mais de 40 anos de prisão por estupros.

OUTRO LADO

Procurada pela Folha, a Associação Torre de Vigia de Bíblias, nome da corporação jurídica usada pelas Testemunhas de Jeová, disse não ser apropriado comentar assuntos sob segredo judicial, mas disse que colaborará com qualquer procedimento jurídico que envolva a proteção de menores.

Em nota enviada à reportagem, afirma que “as Testemunhas de Jeová abominam qualquer tipo de violência, inclusive a sexual, e a consideram como um crime”. Segundo o texto, a política da associação para a proteção de menores requer que os anciãos, ao tomarem conhecimento de alguma alegação de abuso, relatem o fato às autoridades.

A associação diz que, quando não há confissão, “a Bíblia requer que duas testemunhas estabeleçam o que ocorreu” para que os anciãos possam tomar medidas eclesiásticas. Ressalva, no entanto, que esse procedimento religioso não deve ser confundido com o encaminhamento dos casos às autoridades ou não. “Uma denúncia pode ser feita às autoridades mesmo que haja um único denunciante e nenhuma prova adicional.”

A entidade diz manter, de fato, um arquivo confidencial na congregação local para certificar que seja protegida de uma pessoa conhecida como abusador. “Essa medida é importante para proteger menores”, afirma.

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