Cacau, aliado ao meio ambiente, ensaia retomada no Sul da Bahia

28 de março de 2022, 10:45

Região de Ilhéus e Itacaré, no Sul da Bahia, é referência na produção de cacau do Brasil (Foto: Reprodução)

Os tempos dos coronéis do cacau, como registrou a prosa de Jorge Amado há quase 90 anos, estão praticamente enterrados desde o início deste século, quando o fungo vassoura de bruxa quase acabou com a cacauicultura baiana. A incrível história de superação vivida nas últimas duas décadas, tem em seu enredo muito de ciência e de empirismo, mas é consequência principalmente de uma reorganização do setor, formado hoje basicamente por pequenos produtores.

“Se fosse resumir tudo em uma palavra, seria cabruca”, afirma Gonçalo Pereira, professor da Unicamp que desde o início dos anos 2000 decidiu focar parte de sua carreira científica em estudos genômicos sobre o cacau e o fungo que dizimou toda a produção durante os anos 1990 em várias partes do mundo. A Bahia foi especialmente atingida.

O termo que vem à mente do pesquisador faz referência a uma das formas com que o cacau pode ser cultivado. Em harmonia com a Mata Atlântica, ou melhor, na sombra das árvores nativas do bioma. “A cabruca é a melhor forma de produzir, além de proteger o meio ambiente. Esse caminho tem ajudado a preservar a floresta atlântica na região do sul da Bahia”, afirma Pereira.

Existem estudos, inclusive, que dão lastro ao ponto de vista apresentado pelo cientista. Entre os 26 municípios que produzem o grosso do cacau baiano no sul do Estado – a Ilhéus alardeada desde os tempos de Gabriela Cravo e Canela está entre eles –, a abertura de grandes áreas de monocultura ou voltada para a pecuária, por exemplo, não tem ocorrido de forma generalizada, segundo as análises de imagens de satélite.

Relatórios sobre o panorama do setor do cacau, como o publicado por iniciativa do Instituto Arapyaú, também reforçam o fato de que as grandes propriedades chefiadas pelos coronéis ficaram no passado. São aproximadamente 3 mil produtores dedicados ao cultivo do cacau atualmente. Entre os 150 setores censitários avaliados pela pesquisa que engloba dados de 2015 a 2019, 55% das propriedades rurais têm menos do que 20 hectares. Enquanto 18,6% encontram-se na categoria entre 50 e 300 hectares.

O perfil socioeconômico dos produtores de cacau também não lembra em nada a opulência das fazendas descritas por Jorge Amado. A média de idade de quem produz agora é 62 anos. A escolaridade, também em média, é de sete anos. O cacau representa 79% da renda dos estabelecimentos rurais, sendo que 50% dessa amostragem possui renda mensal abaixo dos R$ 1.606.

“Um dos grandes problemas que existem hoje é conseguir fixar as futuras gerações no campo”, afirma Ricardo Gomes, do Instituto Arapyaú. “Sou da chamada geração da vassoura de bruxa (que cresceu sob o fantasma da queda abrupta de produção). Desde os meus bisavós a família produz cacau”, explica Gomes. O apelido que o fungo ganhou é consequência do estrago que ele faz no fruto da planta de cacau. O ressecamento causado pela doença gera o aspecto de uma vassoura de bruxa.

Não existe dúvida, afirma Gomes, que o cacau é um modelo moderno de desenvolvimento viável para a região tanto do ponto vista econômico quanto ambiental. “O potencial é incrível. A cabruca hoje é a maior tecnologia da região. Com políticas públicas bem conduzidas é uma atividade que pode fixar não apenas as futuras gerações, mas também as mulheres no campo”, afirma o representante do Arapyaú, instituição que nasceu exatamente com o intuito de ajudar na consolidação de redes locais de produção, como ocorre com o cacau da Bahia.

Quando se fala em crescimento do setor, a questão é tanto qualitativa quanto quantitativa, afirmam os especialistas. Em média, hoje, por meio do sistema das cabrucas, um cacauicultor trabalha com 300 árvores por hectare, mas as pesquisas mostram que se poderia chegar até 1000. A produção anual nos 26 municípios avaliados está na casa das 40 mil toneladas, ante 390 mil em 1988 (na obra Cacau, de 1933, escrita por Jorge Amado, o tropeiro Antônio Barriguinha, um dos personagens do livro que trabalha na fazenda de um dos coronéis da época, afirma: “Esse ano o home colhe oitenta mil (arrobas)”, o que equivaleria hoje a 1,2 milhão de toneladas).

Um sistema agroflorestal bem azeitado, e isso já vem ocorrendo com várias propriedades do Sul da Bahia, também pode alterar o destino de sua produção. O que significa deixar de fazer um produto commodity para transformá-lo em premium e vendê-lo mais caro no mercado, por exemplo, para a indústria de chocolates gourmets.

“Além de ver sua renda aumentar, essa espécie de resgate da cultura do cacau nestes últimos dez anos, tem gerado um sentimento de pertencimento ao produtor, que ainda está ajudando na preservação ambiental”, analisa Gomes, do Arapyaú. Apesar da convivência com a vassoura da bruxa ser mais pacífica hoje, avanços científicos em curso, segundo Pereira, vão melhorar ainda mais a situação. Após muita pesquisa básica, desenvolvida por quase duas décadas, descobriu-se uma molécula, já existente, que pode ser empregada também contra o fungo que tanto tirou o sono dos produtores de cacau. “É algo que deve ocorrer em breve”, afirma o cientista da Unicamp que se envolveu tanto com o tema a ponto de também ser um produtor de cacau no sul da Bahia.

Estadão

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