Bahia reintegra Ramírez, reforça combate ao racismo e anuncia cláusula antirracista em contratos
24 de dezembro de 2020, 16:36
Índio Ramírez estava afastado de todas as atividades do Bahia desde o último domingo, quando o clube decidiu que abriria uma investigação interna para apurar se o meia-atacante realmente disse a frase “cala a boca, seu negro” para Gerson, do Flamengo (Foto: Reprodução)
O Bahia divulgou uma carta aberta no início da tarde desta quinta-feira para informar que os laudos das perícias contratadas pelo clube não comprovaram a denúncia de injúria racial feita contra o atleta Índio Ramírez e que, portanto, o jogador será reintegrado ao elenco. Além disso, o texto menciona diversas medidas estruturais adotadas para evitar e combater o racismo na instituição e no futebol, de maneira geral.
Índio Ramírez estava afastado de todas as atividades do Bahia desde o último domingo, quando o clube decidiu que abriria uma investigação interna para apurar se o meia-atacante realmente disse a frase “cala a boca, seu negro” para Gerson, do Flamengo, no duelo do último domingo, vencido pelo time rubro-negro por 4 a 3, no Maracanã. No dia seguinte à partida, o atleta colombianose defendeu das acusações e afirmou que foi mal compreendido por Gerson.
“O clube entende que, mesmo dando relevância à narrativa da vítima, não deve manter o afastamento do atleta Indio Ramírez ante a inexistência de provas e possíveis diferenças de comunicação entre interlocutores de idiomas diferentes”, disse o clube. “O papel do Bahia é de formação e transformação, sempre preservando os direitos fundamentais e a ampla defesa. O atleta deverá ser reincorporado ao elenco tão logo os profissionais da comissão técnica e psicólogos entendam adequado”, acrescentou o comunicado.
“O futebol é reflexo de uma sociedade que, quando não nega o racismo, adere a um populismo punitivista que finge resolver o problema apenas punindo o agressor. Atos de discriminação racial não são “casos isolados”, avaliou o clube baiano, que elencou sete medidas tomadas para combater a discriminação racial, incluindo uma cláusula antirracista nos contratos dos jogadores, por “entender seu papel de entidade de interesse público”.
Na carta, o Bahia também afirmou que “seguirá acompanhando os desdobramentos que ocorrerem fora das instâncias do clube, seja na Polícia Civil ou no Superior Tribunal de Justiça Desportiva”. Vale ressaltar que Gerson já prestou depoimento na Delegacia de Crime Raciais e Delitos de Intolerância do Rio de Janeiro (Decradi), e que Ramírez, o técnico Mano Menezes e o árbitro da partida, Flávio Rodrigues de Souza, também foram intimados a depor.
Confira abaixo as medidas adotadas pelo Bahia:
Inclusão de cláusula antitracista, xenofóbica e homofóbica no contrato dos atletas.
Proposta de criação de protocolo antidiscriminatório para jogos de futebol no Brasil.
Implantação do projeto “Dedo na Ferida” para o elenco na pré-temporada. Não haverá jogador ou jogadora que vista a camisa do Bahia sem que tenha antes a oportunidade de obter acesso a uma imersão sobre racismo estrutural.
Encaminhamento junto à mesa do Conselho Deliberativo do clube para incorporação de cotas raciais nas próximas eleições.
Inclusão de espaço no Museu do Bahia dedicado ao combate e debate do racismo, xenofobia, sexismo e LGBTfobia e demais formas de intolerância.
Apoio ao projeto de lei que Cria o Dia Nacional Da Luta Contra o Racismo no Futebol
Na última quarta, o Bahia já tinha comunicado que um dos cinco especialistas consultados pelo clube negou que Ramírez tenha chamado Bruno Henrique de “negro” na partida, em outro bate-boca posterior à discussão com Gerson. O chileno Eduardo Llanos, que tem o espanhol como língua materna, considerou que Ramírez perguntou “tá quanto?” a Bruno Henrique. Já o Flamengo alega que três especialistas em leitura labial ouvidos pelo clube apontaram que o atleta do bahia teria chamado Bruno Henrique de “negro“e que entregaria a prova à polícia e ao STJD.
Outro profissional contratado pelo Bahia, o perito argentino Roberto Niella, também emitiu laudo em que descarta que Ramírez tenha proferido a palavra “negro” durante bate-boca com Bruno Henrique. Essa também foi a avaliação do Instituto Brasileiro de Peritos (IBPTECH), do perito baiano Antonio César Morant Braid e do paulista Mauricio Raymundo de Cunto, todos procurados pelo time baiano.
Vale lembrar que o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) também deve analisar o caso. Ramírez está sujeito a duas punições. Ele pode ser obrigado a pagar multa de até R$ 100 mil e ficar afastado dos gramados por até dez jogos. Isso se for condenado por ato discriminatório, que está previsto no artigo 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD).
PARTE 1 – O RACISMO E A SOCIEDADE
O racismo faz nosso país sangrar. Pela morte, pela dor, pelas portas fechadas, pela discriminação no mercado de trabalho, pela violência diária de todas as formas. O racismo entra pela fresta das casas, está nas ruas, nos supermercados, nas empresas e também no futebol. Segue impregnado por todos os lados. Combater o racismo é dever de todos: das organizações, dos governos e sobretudo das pessoas que historicamente se beneficiaram de uma estrutura social e econômica sustentada na branquitude e no racismo. O racismo é um fenômeno concreto e opera para além das estatísticas de expectativa de vida, acesso à saúde e garantias dos direitos fundamentais e dignidade humana. O racismo é persistente, gritante, barulhento e, por muitas vezes, silenciosamente cruel.
PARTE 2 – O BAHIA NO DEBATE RACIAL
Há três anos, através do Núcleo de Ações Afirmativas, o Bahia se tornou referência internacional na luta antirracista. As campanhas educativas do clube viraram tema de vestibular em universidades e de redação em escolas. Além das campanhas, o Bahia foi o primeiro time de futebol no mundo a lançar um programa de imersão para debater os aspectos estruturais do racismo. O “Dedo na Ferida” capacitou 484 pessoas em 15 organizações de 3 capitais brasileiras. Funcionários, diretores, conselheiros, torcidas organizadas, profissionais de imprensa, além de empresas de fora do esporte, participaram gratuitamente. Antes disso, homenageou personalidades negras do passado e do presente em suas camisas. Na divisão de base, o Bahia possui amplo programa de desenvolvimento humano tendo o combate ao racismo como tema principal. Há apenas 33 dias, abriu programa de trainee exclusivo para pessoas autodeclaradas pretas, ao todo com 305 candidatos, em outra inovação no futebol.
PARTE 3 – ACONTECEU COM O BAHIA? QUAL O SENTIDO DISSO?
O episódio do último domingo (20), com toda a sua repercussão e simbologia, nos revela que o combate ao racismo deve ser ainda mais aprofundado no nosso clube e no Brasil. O Bahia é um reflexo de uma sociedade que carrega o racismo em suas estruturas. A questão racial não pode servir de pano de fundo para uma disputa entre clubes e torcidas rivais. O racismo não veste uma só camisa. A postura antirracista deve ser constante e não apenas quando convém ao time que torcemos. No caso do Bahia, embora já venha perseguindo a luta antirracista, seria ingênuo acreditar que estaríamos imunizados a um fenômeno tão complexo e particularmente enraizado na sociedade brasileira. Ninguém está! Ser antirracista no Bahia não é apenas uma opção da presente gestão, mas uma obrigação institucional.
PARTE 4 – O QUE FAZER?
Os laudos das perícias em língua estrangeira contratadas pelo Bahia não comprovam a injúria racial e o clube entende que, mesmo dando relevância à narrativa da vítima, não deve manter o afastamento do atleta Indio Ramírez ante a inexistência de provas e possíveis diferenças de comunicação entre interlocutores de idiomas diferentes. O papel do Bahia é de formação e transformação, sempre preservando os direitos fundamentais e a ampla defesa. O atleta deverá ser reincorporado ao elenco tão logo os profissionais da comissão técnica e psicólogos entendam adequado.
O Futebol é reflexo de uma sociedade que, quando não nega o racismo, adere a um populismo punitivista que finge resolver o problema apenas punindo o agressor. Atos de discriminação racial não são “casos isolados”.
Portanto, por entender seu papel de entidade de interesse público, o Bahia se compromete publicamente a adotar um conjunto imediato de medidas estruturais:
1. Inclusão de cláusula anti-racista, xenofóbica e homofóbica no contrato dos atletas.
2. Proposta de criação de protocolo antidiscriminatório para jogos de futebol no Brasil.
3. Implantação do projeto “Dedo na Ferida” para o elenco na pré-temporada. Não haverá jogador ou jogadora que vista a camisa do Bahia sem que tenha antes a oportunidade de obter acesso a uma imersão sobre racismo estrutural.
4. Encaminhamento junto à mesa do Conselho Deliberativo do clube para incorporação de cotas raciais nas próximas eleições.
5. Inclusão de espaço no Museu do Bahia dedicado ao combate e debate do racismo, xenofobia, sexismo e LGBTfobia e demais formas de intolerância.
6. Apoio ao projeto de lei que Cria o Dia Nacional Da Luta Contra o Racismo no Futebol
Adicionalmente, o Bahia seguirá acompanhando os desdobramentos que ocorrerem fora das instâncias do clube, seja na Polícia Civil ou no Superior Tribunal de Justiça Desportiva.
Além de negros, somos nordestinos e conhecemos bem o poder do preconceito e da exclusão pela xenofobia. Diante disso e das provas constituídas, caberá ao atleta Ramírez decidir pela denúncia ou não quanto ao tema – e ao Bahia apoiar a decisão.
Desde o domingo à noite o Bahia procurou uma rede de apoio formada por lideranças ligadas a movimentos sociais de enfrentamento ao racismo como o Observatório de Discriminação Racial e instituições como a Defensoria Pública e o Ministério Público do Estado, com quem está construindo um Termo de compromisso antirracista. Entendemos que nesse momento é necessário incorporar o compromisso com a implantação real e perene da agenda antirracista. Desta forma, respaldo institucional e a experiência de tais atores deste processo consolida e qualifica as nossas decisões.
Muitas das ações propostas neste documento, dentre outras, estarão sendo instrumentalizadas, nos próximos dias em convênios, parcerias e termos de compromissos com a agenda de enfrentamento ao racismo. As decisões e propostas durante esse processo tiveram a colaboração dos voluntários do nosso Núcleo de Ações Afirmativas, professores e ativistas atuantes no debate racial nas universidades e nos movimentos sociais.
O Bahia segue como um clube atento ao seu papel de transformação e bem-estar social. O futebol não é um fim em si mesmo. É um agente que deve promover união, preservação do patrimônio cultural, lutas por igualdade e diversidade dentro e fora das quatro linhas”.
Fonte: Estadão
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