Pesquisa da vacina russa para a Covid-19 foi cercada de segredo

12 de agosto de 2020, 07:41

Custeada por 4 bilhões de rublos (R$ 300 milhões) pelo RDIF (Fundo de Investimento Direto da Rússia), a Sputnik teve colaboração direta do Ministério da Defesa Russ (Foto: Reprodução)

A polêmica criação da Sputnik V, a vacina que os russos aprovaram nesta terça (11) para combater o novo coronavírus, foi uma operação cercada de segredo.

Com efeito, ela teve caráter militar. Custeada por 4 bilhões de rublos (R$ 300 milhões) pelo RDIF (Fundo de Investimento Direto da Rússia), a Sputnik teve colaboração direta do Ministério da Defesa Russo.

Uma de suas unidades, o 48º Centro de Pesquisas, participou do esforço liderado pelo Instituto Gamaleia, principal referência em microbiologia e virologia na Rússia.

Mais chamativa ainda foi a participação do Centro Vektor. Criado em 1974, esse instituto era um dos responsáveis por pesquisas de armas biológicas soviéticas durante a Guerra Fria.

Com laboratórios de segurança máxima, é um dos poucos lugares do mundo onde estão guardados exemplares do vírus da varíola.

Hoje, o Vektor faz parte do Serviço Federal para Vigilância de Proteção do Direitos do Consumidor e Bem-Estar Humano. O nome civil, segundo analistas russos, apenas dissimula seu caráter ainda militar.

Há também o lado tecnocrático. O RDIF assumiu toda a divulgação dos esforços do Gamaleia, e não o Ministério da Saúde ao qual o instituto é subordinado.

O site da vacina foi lançado nesta terça sob sua supervisão, com traduções em sete línguas -inclusive o português, já que o Brasil é um mercado-alvo do produto e já há testes previstos no Paraná. As conversas com outros países, como os Emirados Árabes, também passaram pelo fundo.

A primeira notícia acerca de uma vacina russa ocorreu em maio, quando o diretor do Gamaleia, Alexander Ginzburg, revelou em uma entrevista ao Ministério da Saúde russo que havia testado o imunizante em si mesmo e em outros pesquisadores.

A prática, amplamente condenada no Ocidente, gerou polêmica. Os detalhes vieram a conta-gotas, ao longo dos meses: 40 voluntários, metade deles das Forças Armadas, começaram a ser testados em junho.

A chamada fase 1 acabou e os russos, considerando os resultados satisfatórios, pularam direto para a fase 3 -só que, em vez de fazer amplos testes, querem começar a vacinação em massa e acompanhar os resultados.

A Organização Mundial da Saúde já disse que não tem detalhe sobre como a vacina foi produzida, logo não a recomendará por ora.

A confiança na segurança do imunizante soa exagerada, mas segundo o diretor do RDIF, Kirill Dmitriev, se baseia no fato de que a vacina combina elementos testados em “milhares de pessoas” ao longo de seis anos, em vacinas contra o ebola e a Mers (uma doença prima da Sars, mais mortífera).

Dmitriev também se vacinou, e disse que teve resposta imune e nenhum efeito colateral. Por heterodoxos que sejam os métodos de Ginzburg, desde 1997 à frente do Gamaleia, o centro é uma instituição da medicina russa.

Foi criado em 1891, em Moscou, para as incipientes pesquisas bacteriológicas da época, pelo médico Filipp Blumenthal (1859-1927).

Em 1919, após a Revolução Russa, foi nacionalizado pelos comunistas no poder. Ao longo dos anos, diversos outros centros foram sendo incorporados a ele, até se tornar o Instituto Central de Epidemiologia e Microbiologia, em 1931.

Durante a Segunda Guerra Mundial, após a invasão alemã da União Soviética em 1941, foi quase todo transferido para longe das linhas de frente, em Kazan, Alma-Ata e Sverdlovsk.

Em 1949, morreu o pai da microbiologia russa e de programas de vacinação, Nikolai Gamaleia (nascido em 1857). Ele, que havia trabalhado diversas vezes com o instituto, passou a emprestar seu nome a ele -prática comum na Rússia, onde até o metrô de Moscou tem um nome, no caso o líder soviético Vladimir Lênin (1870-1924).

Programas extensos de vacinação passaram por lá e, a partir de 1966, o Gamaleia passou a focar mais em pesquisa pura. De lá saíram descobertas como a relação entre vírus e tumores, diagnóstico por quimioluminescência e o desenvolvimento da droga interferon.

A desconfiança internacional sobre a pesquisa médica russa, evidenciada pelos prazos exíguos da Sputnik, nem sempre foi assim. Mesmo no início da dura rivalidade da Guerra Fria, a União Soviética mantinha cooperação com os norte-americanos, seus adversários ideológicos.

O virologista Mikhail Tchumakov (1909-93), por exemplo, trabalhou em conjunto com o americano Albert Sabin (1906-86) para a criação da vacina oral contra a poliomielite.

A hoje universal gotinha foi testada primeira com soviéticos, entre 1958 e 1959, no mesmo momento em que a corrida espacial pegava fogo. Os EUA torceram o nariz politicamente, mas em 1962 acabaram aprovando também o imunizante.

Folhapress

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