No fim do Império, Brasil tentou substituir negros por “semiescravos” chineses

09 de setembro de 2019, 15:44

Trabalhadores chineses da região da Manchúria/China. Fevereiro 1905 (Foto: Reprodução)

“O trabalhador chim, além de ter força muscular, é sóbrio, laborioso, paciente, cuidadoso e inteligente mesmo”, disse então primeiro-ministro do Brasil Império.

Era 1880 quando o governo imperial enviou diplomatas para o outro lado do mundo para trazer “semiescravos” chineses. A proposta era evitar o colapso das lavouras de café com fim iminente da escravidão de negros, homens e mulheres.

Pouco tempo antes de enviar a missão para a China, instituindo o primeiro tratado bilateral entre os dois países, parlamentares debatiam no Senado se a vinda dos “chins”, como eram chamados os chineses, seria a solução para os problemas dos fazendeiros e à garantia da produção do café, a maior fonte de renda do Brasil naquele momento.

Os trechos a seguir, das falas de senadores, são carregados de preconceito e revelam a visão distorcida que deu base à instauração de muitas políticas no Brasil e no mundo daquela época. Esse artigo é o resumo da matéria de Ricardo Westin, da Agência Senado.

“O trabalhador chim, além de ter força muscular, é sóbrio, laborioso, paciente, cuidadoso e inteligente mesmo. Por sua frugalidade e hábitos de poupança, é o trabalhador que pode exigir menor salário. Assim, deixa maior soma de lucros àquele que o tem a seu serviço. É essa precisamente uma das razões por que devemos desejá-lo para o nosso país”, disse o então primeiro-ministro do Brasil Imperial João Lins Vieira Cansanção de Sinimbú, durante uma sessão no Senado, em 1879.

Sinimbú queria convencer os parlamentares a aprovarem a liberação de verba para o envio da missão diplomática à China. A viagem, realizada em um navio de guerra da Marinha, custaria 120 contos de réis, valor equivalente na época à soma dos orçamentos aplicados na Biblioteca Pública, Observatório Astronômico, no Liceu de Artes e Ofícios, na Imperial Academia de Medicina e Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro para todo o ano de 1879.

A proposta do primeiro-ministro era que os chineses seriam assalariados, mas o modelo de exploração seria o mesmo reproduzido em outros países como Estados Unidos, Cuba e Peru, para onde os “chins” foram levados e submetidos a jornadas extenuantes, ambientes insalubres e castigos físicos, em troca de pagamentos irrisórios.

 

Apesar desse quadro oferecido aos fazendeiros do Brasil, muitos temiam a ideia da imigração de chineses, apresentados à população como exóticos, de costumes não cristãos e de ‘raça inferior’ à europeia.

“Senhores, não sei que fatalidade persegue este Império, digno de melhor sorte: ou há ter africanos, ou há de ter chins? Li numa memória acerca da colonização chim que diz ser essa uma raça porca que muda de roupa só duas vezes ao ano. Pois, quando as nossas leis estabelecem prêmios àqueles que trouxerem para o Império boas raças de animais, tratam de mandar buscar rabichos e caricaturas de humanidade?”, criticou o senador Manuel Pinto de Souza Dantas (AL).

“Depois de tantos anos de independência e de estarmos mais ilustrados a respeito da marcha dos negócios do mundo, havemos agora de voltar atrás e introduzir nova raça, cheia de vícios, de físico amesquinhado, de moral abatido, que não tem nada de comum aqui e não tem em vista formar uma pátria e um futuro? Havemos de introduzir semelhante raça somente para termos daqui a alguns anos um pouco mais de café?”, reforçou o senador João José de Oliveira Junqueira (BA).

“Venham muitos chins, para morrerem aos centos, aos milhares”, ironizou o senador Alfredo Maria Adriano D’Escragnolle Taunay (SC). “Deles, ficará apenas o trabalho explorado pelos espertalhões. É um trabalho que se funda na miséria de quem o pratica e no abuso de quem o desfruta. Que erro colossal! Que cegueira!”.

“Acostumado à convivência branda e amistosa dos antigos escravos brasileiros, fazendeiro nenhum será capaz de suportar o contato dos chins. Seus vícios se exacerbam com o uso detestável e enervante do ópio. Só o cheiro que os chins exalam bastará para afugentar o fazendeiro mais recalcitrante”, completou.

“A ciência da biologia ensina que, nesses cruzamentos de raças tão diferentes, o elemento inferior vicia e faz degenerar o superior”, arrematou o então senador Visconde do Rio Branco (MT).

A reportagem da Agência Senado lembra que, naquela época, as ideias racistas eram naturalizadas no mundo com o respaldo de supostas teorias científicas.

“Segundo o racismo pseudocientífico, os brancos formam a raça superior e os negros, a raça inferior. No meio deles, como raça intermediária, surgem os amarelos ou orientais. Entre os teóricos da hierarquização das raças, estão Arthur de Gobineau, Ernest Renan e Gustave Le Bon. Gobineau, diplomata francês que serviu no Rio de Janeiro, concluiu que o Brasil era um país atrasado por causa da miscigenação entre brancos e negros”, escreve o jornalista Ricardo Westin, autor da reportagem.

Mesmo os senadores que defenderam a imigração asiática usaram argumentos que desprestigiavam os chineses, como o senador Visconde de Albuquerque:

“Dizem que os chins vêm amesquinhar a nossa raça, mas não estão aí os nossos índios? Qual de nós não gosta muito de ter um desses índios para o seu serviço? E isso piora a nossa raça? Vejam que tememos raça chim e não tememos a raça preta! Os chins não nos vêm perturbar a ordem doméstica. Pelo contrário, são muito humildes, servem muito, trabalham. São até excelentes cozinheiros. Não são revolucionários, não têm pretensões. Acho que é uma boa importação”.

“São sóbrios, infatigáveis e econômicos. Sendo materialistas, só visam o lucro. Além de materialistas, são educados sob o regime autoritário o mais severo que lhes impõe desde o nascer. É com esse espírito de ordem que trabalham”, comentou ainda o senador Cândido Mendes de Almeida (MA).

“Ainda que venha grande número de trabalhadores asiáticos, é manifesto que eles nutrem sempre a intenção de voltar para o seu país. Eles levam tão longe o amor ao solo da pátria, que nos contratos que costumam celebrar até estipulam que os seus cadáveres serão remetidos para a terra natal. Isso prova que não é de prever que queiram fixar-se definitivamente entre nós”, procurou tranquilizar o primeiro-ministro Cansanção de Sinimbu.

Nem mesmo o deputado Joaquim Nabuco (PE), que ficou marcado na história pela luta em favor da abolição da escravidão de negros, escapa. Ele usou a tribuna da Câmara para criticar a importação de chineses indicando esse grupo populacional como uma raça que poderia levar a “mongolização” do país e uma “segunda edição da escravatura, pior que a primeira”.

No final dos debates, tanto na Câmara quanto no Senado, os políticos acabaram aprovando, em 1879, a liberação dos 120 contos para levar a missão diplomática à China. O navio partiu do Rio de Janeiro rumo à cidade de Tientsin (hoje Tianjin), nos arredores de Pequim e completou uma volta ao mundo durante todo esse percurso.

Na China os diplomatas brasileiros omitiram para o Império chinês de que a parceria de migração tinha como objetivo substituir o trabalho de negros escravizados.

“Eles [os diplomatas brasileiros] juram que buscam apenas a amizade do império asiático”, escreve Westin. “Traumatizado pelo histórico de violências sofridas pelos súditos chineses nas Américas, o vice-rei reluta em assinar o acordo com o Brasil, mas acaba cedendo”, completa.

A versão final do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação, garantindo o livre trânsito de cidadãos entre os dois impérios, foi assinada em 1881. Foi também a partir daquele ano que o Brasil instalou o primeiro consulado em Xangai.

Apesar da vitória da diplomacia brasileira, os “chins” nunca vieram trabalhar nas lavouras brasileiras de café. Isso porque dom Pedro II decidiu não gastar mais nenhum centavo para trazer os imigrantes. O dinheiro teria que ser retirado do bolso dos próprios fazendeiros.

 

Westin conta que um comerciante chinês chegou a desembarcar no Rio de Janeiro para negociar o transporte de trabalhadores, mas foi embora sem fechar negócio. Logo em seguida, começou a imigração italiana.

A visão maledicente dos produtores e políticos brasileiros em relação aos chineses é apontada como a principal razão do insucesso do tratado que visava a imigração de gente asiática. Nem imaginavam eles que, mais de um século depois, a China se tornaria o maior investidor estrangeiro do Brasil e uma das maiores potências econômicas do mundo.

 

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