Proibição de ações policiais em favelas reduziu mortes em 72,5%

04 de agosto de 2020, 09:10

Com a suspensão das operações por conta da liminar, os tiroteios com a presença de agentes públicos em áreas próximas a unidades de saúde foram reduzidos em 82,4% (Foto: Reprodução)

Desde o dia 5 de junho, há um clima diferente nas ruas do complexo de favelas de Manguinhos, na zona norte do Rio de Janeiro.

A data marca o início da proibição de operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro no período da pandemia da Covid-19, salvo em casos “absolutamente excepcionais”, como determina liminar concedida pelo ministro do Supremo Tribunal de Justiça Edson Fachin.

A medida reduziu em 72,5% o número de mortes ocorridas no contexto de incursões policiais na região metropolitana do Rio entre 5 de junho e 5 de julho, segundo análise do Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos (GENI), da Universidade Federal Fluminense.

Segundo projeções do estudo a partir desta redução, a suspensão das operações seria capaz de poupar 360 vidas em um ano.

“Manguinhos está diferente. Sem operações, é como se houvesse uma mágica que deixasse até o ar mais leve. E, nele, eu consigo viver e respirar”, desabafa Eliene Maria Vieira, integrante do movimento Mães de Manguinhos, que reúne familiares de crianças e jovens vítimas da violência policial.

“Quando existe operação, ao contrário, o pavor fica no ar. E, quando começam os tiros, é terror e desespero porque você sabe que muito provavelmente tem alguém sendo morto”, explica ela. “Nós não estamos defendendo o crime. O que defendemos é a vida.”

Além da redução das mortes de cidadãos e agentes de segurança pública no contexto das operações, o estudo da UFF identificou redução de 37,7% nos crimes contra a vida (homicídio, latrocínio e lesão corporal seguida de morte) e de 39% nos crimes contra o patrimônio ao comparar as ocorrências de 5 de junho a 5 de julho de 2020 com a média do mesmo período entre 2007 e 2019.

“Ficou demonstrado que as operações policiais não são um método eficiente de combate ao crime”, explica o sociólogo Daniel Hirata, coordenador do GENI. “A liminar [de Fachin] foi efetiva na preservação de vida, inclusive de policiais, sem incorrer no aumento da criminalidade contra a vida nem contra o patrimônio.”

A decisão do ministro Fachin foi proferida duas semanas depois do assassinato do menino João Pedro Mattos Pinto, anos 14 anos. Ele foi morto dentro da casa do primo, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, com um tiro de fuzil disparado por policiais civis em uma operação.

O caso ocorreu no contexto de aumento das operações policiais, que, a partir de abril, cresceram 27,9% em relação ao mesmo período de 2019, segundo dados da Rede de Observatório da Segurança.

A plataforma Fogo Cruzado, que mapeia a ocorrência de tiroteios no Rio, pode comparar este fenômeno com as trocas de tiros ocorridas fora do âmbito das operações das polícias.

“O que vimos no início da pandemia foi o aumento dos tiroteios com a presença de agentes de segurança pública, na contramão dos demais tiroteios, que vinham diminuindo”, explica a gestora de dados da Fogo Cruzado, Maria Isabel Couto.

As operações dificultaram o trabalho de equipes de saúde e a entrega de ajuda humanitária para famílias vulneráveis desses territórios. “Mapeamos oito ações sociais em comunidades que tiveram de ser interrompidas por tiroteios com a presença de agentes de segurança”, relata Couto. “Elas resultaram em nove pessoas baleadas, sendo que cinco acabaram mortas.”

Desde o início da pandemia, também ocorreu incremento acentuado da letalidade policial no Rio de Janeiro. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública, as mortes em decorrência de intervenção policial cresceram 43% em abril de 2020 em relação ao mesmo mês de 2019, mesmo com queda nos índices de ocorrências criminais.

A medida cautelar concedida por Fachin -que deve ser confirmada ou não pelos demais ministros da Casa até esta terça-feira (4)- ocorreu no âmbito da ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635.

Apelidada de ADPF das Favelas, a ação reúne coletivos, movimentos sociais e organizações da sociedade civil que atuam nesses territórios e lidam cotidianamente com a violência armada dos grupos criminais e do Estado.

Encabeçada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, a ADPF 635 aponta para violações de direitos indissociáveis das operações policiais em territórios adensados e complexos como as favelas, onde a maioria absoluta da população não tem qualquer relação com a criminalidade, e pede medidas objetivas.

Entre os preceitos fundamentais descumpridos, segundo a ação, estão os direitos à vida, à dignidade da pessoa humana, à segurança, à inviolabilidade do domicílio, à igualdade e à prioridade de crianças e adolescentes na garantia desses direitos.

Para o julgamento do mérito da ação, a corte aceitou como amicus curiae (amigos da corte) entidades menos formais, como coletivos e movimentos. Participam da ação como amicus curiae grupos não institucionais, como Coletivo Papo Reto, Coletivo Fala Akari e Mães de Manguinhos, além de organizações como Movimento Negro Unificado, Educafro, Redes da Maré, Justiça Global e Conectas Direitos Humanos, entre outros.

“É um marco para a justiça brasileira que essas organizações tenham sido acolhidas na discussão da ADPF 635. E é um marco para as comunidades de terem conseguido se organizar para apresentar, num conflito judicial, seus dados e informações, que são poderosos”, avalia o advogado Gabriel Sampaio, coordenador de litígio da Conectas Direitos Humanos.

“Com essa participação no julgamento, o STF pode tomar uma decisão que, além da análise constitucional, considera os atos normativos e a política de segurança pública do Rio de Janeiro à luz de suas consequências para as pessoas que vivem em favelas.”

No Brasil, 13,6 milhões de pessoas vivem em favelas. O Rio de Janeiro é a cidade que concentra maior percentual da população vivendo em bairros com este tipo de urbanização: 22%, ou 1,3 milhões de pessoas. Estudos apontam que entre 65% e 70% dos moradores de favelas são negros no Brasil.

Entre os pedidos da ADPF estão a formulação de um plano de redução da letalidade policial e de violações de direitos humanos, a vedação ao uso de helicópteros como plataformas de tiro ou instrumentos de terror, a divulgação dos protocolos de atuação policial, a instalação de câmeras e GPS nas viaturas, a presença de ambulâncias com equipes médicas durante as operações e a redução de operações no entorno de hospitais e escolas a casos excepcionais.

Desde 5 de junho, com a suspensão das operações por conta da liminar, os tiroteios com a presença de agentes públicos em áreas próximas a unidades de saúde foram reduzidos em 82,4%.

Restringir as operações a espaços e horários que não coloquem em risco os estudantes das comunidades é uma das muitas batalhas da família de Uidson Alves Ferreira, 35.

Ele é irmão de Maria Eduarda Alves da Conceição, morta em 2017, aos 13 anos, atingida por tiros de fuzil durante a aula de educação física de sua escola, na Pavuna, zona norte do Rio. Ocorria uma operação policial nas redondezas, e a perícia comprovou que os tiros que atingiram a jovem partiram da arma do cabo Fábio de Barros Dias.

“Queremos ver o policial preso porque está provado que os tiros partiram dele. E sua prisão pode mostrar que o Estado está dizendo que quem fizer algo errado, vai pagar por isso”, diz Ferreira.

Para ele, a ADPF das favelas é motivo de esperança. “Quero ver as favelas unidas em prol do povo do Brasil. Essas ações policiais não acontecem em Ipanema, Copacabana ou na Barra da Tijuca. Até quando?”

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