Indignação: Estudante negro é impedido de continuar no curso de medicina na Bahia (Fotos)

28 de março de 2023, 16:31

Aprovado em Medicina no Sisu de 2021.1, o estudante David Libarino Santos teve a continuidade do curso indeferida pela “banca de heteroidentificação racial”, no processo de aferição dos candidatos (Foto: Álbum de família)

*Zuca Assunção –

“Pense num absurdo, na Bahia tem precedentes”. Esta célebre frase, cunhada por Otávio Mangabeira, que governou o Estado da Bahia de abril de 1947 a janeiro de 1951, foi dita em razão do mesmo espantar-se muitas vezes com o que via acontecer por estas bandas.

A citação desta frase não é por mero acaso, mas sim em razão de um real absurdo que está acontecendo com o estudante negro David Santos Libarino, que foi impedido de prosseguir no curso de medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA) após cursar três semestres na referida instituição. Aprovado em Medicina no Sisu de 2021.1, o estudante teve a continuidade do curso indeferida pela “banca de heteroidentificação racial”, no processo de aferição dos candidatos, realizado somente em outubro de 2022, quando esgotadas todas as possibilidades de David fazer uma outra opção com a nota obtida, inclusive a de apelar para uma outra faculdade.

A irresignação com a decisão de indeferimento pela Banca de Heteroidentificação Racial ocorre em diversos setores da sociedade organizada de Vitória da Conquista, como o Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial, Comissão de Igualdade Racial da OAB-Ba, Agentes de Pastorais Negros e Negras do Brasil (APNs), dentre outros. Para todas as lideranças desses movimentos, as irregularidades da banca de aferição são totalmente inadmissíveis e injustificáveis, sobretudo porque após o indeferimento foi realizado um teste genético de ancestralidade “MyHeritage” em David Santos (veja no final do texto), onde constatou-se que o mesmo possui 40,2% de afrodescendência. Para todos os envolvidos na luta pela tentativa de reversão do resultado da banca de aferição é urgente que a reitoria da UFBA se manifeste, “o que lamentavelmente não aconteceu até o presente momento”, informam.

Avós maternos de David (foto anexada ao recurso administrativo apresentado a UFBA)

O pior, segundo a avaliação da advogada Maria Aparecida Carvalho, da Comissão de Igualdade Racial da OAB-Ba, é que a banca de aferição da UFBA/Vitória da Conquista “não deu qualquer justificativa e ou motivação para o indeferimento de David Santos”. Nos documentos apresentados pela UFBA na Ação 106996-92.2022.4.01.3307, ajuizada por David Santos na Justiça Federal, a instituição de ensino informa que “Na UFBA, a verificação como um procedimento de heteroidentificação, utiliza o ‘Método Oju Oxê’ (Olhos da e para a Justiça), desenvolvido pela professora do Instituto Federal da Bahia (IFBA) Marcilene Garcia de Souza, doutora em sociologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), onde desenvolveu pesquisa sobre cotas raciais em concursos públicos. O método utiliza a seleção visual de características do fenótipo, mediante uma observação que leva em conta a presença de traços negroides, como cor da pele, formatos do rosto, nariz e lábios, textura dos cabelos etc”. Ou seja, método de avaliação absolutamente subjetivo.

Advogada Maria Aparecida, da Comissão de Igualdade Social da OAB-Ba

O Recurso Administrativo apresentado por David junto à própria Instituição também foi indeferido e não lhe restou outra alternativa senão acionar a Justiça Federal, com pedido de antecipação de tutela para reingresso no curso antes da decisão final, mas um Juiz de 1º grau negou a tutela antecipada, justificando que “os elementos constantes dos autos não são suficientes para infirmar a conclusão impugnada, notadamente porque o acolhimento da pretensão da parte autora requer a superação da presunção de legitimidade de ato administrativo, que somente pode ocorrer mediante prova robusta em sentido contrário”. Ou seja, o recorrente (David|) terá que aguardar a sentença, que só acontecerá após a instrução do processo, com manifestação da UFBA e depoimento das partes envolvidas.

No recurso o autor (David) argumenta, em síntese, que “a etapa de Heteroidentificação complementar a qual foi submetido ocorreu em 10 de outubro de 2022, portanto no fim do 3º semestre, quase 2 anos depois de iniciado o curso, consequentemente sendo extemporânea aos processos de pré-matrícula ou matrícula”. E, ainda, que “a etapa ocorreu pelo método “COMPARATIVO”, onde a “COR” e os “TRAÇOS FENÓTIPOS” dos alunos participantes eram comparados com aqueles já deferidos ou indeferidos”, e que no dia foram tiradas fotos do Autor pela própria banca examinadora”.

Os pais de David no dia do matrimônio

Enquanto não se decide o imbróglio administrativo e jurídico, David Santos e parentes, especialmente Márcia de Jesus Santos, sua mãe, padecem com a possibilidade da interrupção da realização de um sonho de uma família reconhecidamente humilde e lutadora. Para se ter uma ideia, para entrar com a ação na Justiça Federal David foi obrigado a rifar a própria bicicleta que usava para ir para a faculdade. Sem qualquer condição de arcar com os honorários do advogado, teve que recorrer a ajuda de amigos, em especial do professor Alcides Fagundes, que criou uma rifa virtual para ajudar na complementação do valor cobrado pelo advogado.

Professor Alcides Fagundes

Uma das lideranças do movimento, o professor Alcides reclama da insensibilidade de uma instituição de educação “que não se coloca no lugar desses meninos recém- saídos de uma pandemia. Com a manutenção do indeferimento ela (a Instituição) estará causando danos ao patrimônio, pois a vaga vai ficar vazia, sem ninguém para ocupar. É enorme o prejuízo desse rapaz. Com a ocupação da vaga durante três semestres, ele perdeu o direito de lançar sua nota no segundo Sisu; não pôde fazer o segundo Enem, e também não pôde fazer nenhum dos outros vestibulares. Se soubesse antecipadamente que seria indeferido, com a nota obtida ele passaria tranquilamente em outras faculdades, então foram-lhe ceifadas todas as possibilidades de buscar outra alternativa. Como educador, sei da importante de fazermos as pessoas lutarem por seus direitos, inclusive porque é a partir daí que conquistaremos mais direitos”, conclui.

David e seus avós paternos e seus pais

Desesperada com a possibilidade de o filho perder a vaga conquistada com muita luta e dedicação, Márcia de Jesus Santos, ex-faxineira e mãe solo (o pai de David o abandonou quando ele tinha apenas dois anos) desabafa: “Eu realmente estou indignada. Depois de muito sacrifício, somos de família pobre, meu filho conseguiu realizar o sonho de entrar na faculdade de Medicina, pois desde criança ele dizia que queria ser médico. E agora, dois anos depois, a Banca diz que ele não é mais pardo, que ele é branco. Meu pai é negro, minha mãe é negra, minha família é toda negra. Eu sou parda e o meu filho ainda é mais moreno que eu. É uma injustiça tremenda o que ele está passando, porque a gente nunca teve condições e estão roubando um direito que é dele, é dele mesmo. Isso me deixa indignada, nossa família toda está sofrendo, esse problema está envolvendo a cidade toda. Então é uma injustiça tremenda o que estão fazendo com   ele”,

A APNs – Agentes de Pastorais Negros e Negras do Brasil encaminhou ofício ao diretor da Universidade Federal da Bahia/Campus Anísio Teixeira solicitando “que fossem consideradas as alegações sobre o fato inequívoco e extemporâneo de convocação do estudante para a Banca de Heteroidentificaçao”, argumentando que “no que pese todo o pioneirismo dessa egrégia Instituição de Ensino (IES) na adoção de politicas afirmativas destinando reserva de vagas para estudantes negros, pardos e indígenas, observa-se que o estudante não foi submetido ao processo na data e horário definidos pelo edital, mas de maneira extemporânea, no final do 3º semestre, quase dois anos depois de iniciado o curso de Medicina”.

Heberson Sonkha

Segundo o militante negro Herberson Sonkha, do Movimento de Luta nos Bairros e um dos maiores apoiadores da causa de David, “em qualquer sociedade contemporânea, sobretudo aquelas organizadas por constituições de orientação federalista estadunidense, de tradição anglo-saxônica ou austro-germânica, as formas de racismos não foram superadas. Desse modo, para as constituições liberais (como a nossa), os racismos estão cada vez mais recrudescidos. Espera-se do Estado, que os Direitos Humanos cumpram essa tarefa de erradicar os racismos nas democracias contemporâneas”.

Teste genético de ancestralidade “MyHeritage” de David Santos
Componentes cursados completos por David

*Servidor Público Federal e jornalista

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