Cestas da alimentação escolar com produtos da agricultura familiar não estão chegando às crianças e adolescentes do Semiárido

15 de outubro de 2020, 10:27

(Foto: Reprodução)


(Da assessoria) – Levantamento da ASA e FBBSAN também identificou que em 37% dos municípios pesquisados não há entrega de cestas para as famílias dos/as estudantes nesta pandemia

Nos dias em que se celebra a semana mundial da alimentação, a Articulação Semiárido (ASA) e o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) revelam dados que mostram a falta de compromisso de governantes com a alimentação dos escolares e a renda dos agricultores familiares no nordeste e semiárido brasileiro.

Durante os meses de agosto e setembro passados, ASA e FBSSAN ouviram 168 grupos produtivos de agricultores familiares e pescadores artesanais fornecedores de alimentos para as escolas públicas, que estão presentes em 108 municípios da região Nordeste e/ou no Semiárido brasileiro. Os dados coletados neste levantamento confirmam suspeitas preocupantes com relação à execução do Programa Nacional de Alimentos (PNAE) durante a pandemia do coronavírus.

Segundo relato dos produtores, em 40 (37%) dos 108 municípios pesquisados não aconteceu a distribuição de cestas de alimentos aos escolares, o que foi autorizado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento Escolar (FNDE/MEC) logo após a suspensão das aulas. Outro dado alarmante é que 74 (44%) dos 168 grupos produtivos (cooperativas e grupos informais) que até 2019 vendiam alimentos saudáveis e diversificados ao PNAE, não o fizeram em 2020.

“O PNAE é o principal instrumento que temos para enfrentar a insegurança alimentar das crianças e adolescentes durante a pandemia. Por isso a omissão dos governantes em relação à distribuição das cestas da alimentação escolar é muito grave. Perdem as crianças, muitas das quais têm na alimentação escolar a principal refeição do dia. E, com a interrupção das compras, perdem os agricultores familiares que dependem deste canal de comercialização para seu sustento”, destaca Mariana Santarelli, do Fórum Brasileiro de Segurança e Soberania Alimentar (FBSSAN) e relatora da Plataforma de Direitos Humanos Dhesca Brasil, uma rede formada por 40 organizações e articulações da sociedade civil, que desenvolve ações de promoção e defesa dos direitos humanos.

Para além da perda na quantidade e qualidade da alimentação das crianças e adolescentes das escolas públicas, agricultores e agricultoras deixam de entregar seus produtos na escola, o que acarreta na perda da renda e no desperdício de alimentos, justamente em um momento em que cresce a pobreza e fome, aumentando a vulnerabilidade social nas regiões mais pobres do país, como é o caso do Semiárido.

Para a pesquisa, a escolha pelo Nordeste, região que tem 72% de sua área caracterizada como semiárida, não foi em vão. A região, historicamente, concentra um grande número de pessoas em situação de pobreza e miséria do país. A pesquisa Síntese de Indicadores Sociais (SIS), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em dezembro de 2018, aponta que o Nordeste concentra 44% das pessoas em situação de pobreza do Brasil, o equivalente a 24,5 milhões de pessoas. No Brasil todo, foram contabilizadas 54,8 milhões de pessoas em situação de pobreza no país, o que representa cerca de um quarto da população do Brasil (26,5%).

De mãos dadas com a pobreza e a miséria, vemos a fome. Outra pesquisa também do IBGE, a de Orçamentos Familiares (POF), divulgada em setembro passado, afirma que, em 2017, dos 3,1 milhões de domicílios com insegurança alimentar grave no Brasil, 1,3 milhão estava no Nordeste. Ou seja: a região concentra quase 42% das pessoas em situação de fome de todo o país.

Dada a gravidade desta situação, no próximo dia 4 de novembro, FBSSAN, ASA, e Plataforma DHESCA realizarão uma Audiência Popular pela internet para ampliar a mobilização social e política e reforçar a pressão para que as gestões públicas municipais e estaduais voltem a comprar alimentos das famílias agricultoras, mesmo durante a pandemia. Por todo o país, há exemplos bem sucedidos que mostram que é possível estabelecer o abastecimento popular de alimentos saudáveis para o PNAE, é o que relatam algumas cooperativas que compõem a ASA.

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) na pandemia

O PNAE é responsável pela oferta de alimentação escolar a todos os estudantes da educação básica pública. Considerado uma das mais relevantes políticas voltadas à garantia do Direito Humano à Alimentação e a Nutrição Adequadas (DHANA), o programa atende cerca de 41 milhões de estudantes, com repasses financeiros aos 27 estados e 5.570 municípios, da ordem de R$ 4 bilhões anuais. Para muitos destes estudantes, é na escola que se faz a única ou principal refeição do dia. Por lei, as prefeituras e estados têm a obrigação de adquirir no mínimo, 30% dos recursos previstos para a alimentação escolar na compra alimentos da agricultura familiar.

Com estes 30%, que representa R$ 1,2 bilhão, é que se assegura boa parte dos alimentos frescos e minimamente processados para a comunidade escolar. No levantamento feito pela ASA e FBSSAN, 61% dos grupos produtivos entrevistados fornecem frutas, legumes e verduras frescos, 36% alimentos minimamente processados, como polpas, sucos e pães, 20% fornecem carnes e ovos. “São circuitos virtuosos de produção e consumo, que valorizam a produção e a cultura alimentar local”, diz Naidison Baptista, da coordenação executiva nacional da ASA pelo estado da Bahia.

A legislação federal aprovada para atender a situação de emergência de calamidade pública devido à pandemia de Covid-19 prevê que os recursos do PNAE continuem sendo repassados aos entes federados e sejam utilizados para a compra e distribuição de alimentos aos estudantes.
O que está acontecendo onde não há distribuição das cestas e são interrompidas as compras da agricultura familiar?

As situações mais graves são relatadas por grupos produtivos que atuam nos 40 municípios que até setembro não haviam feito nenhum tipo de distribuição de cestas de alimentos. Nestes municípios, em 2019, um total de 1.667 agricultores, organizados em 53 cooperativas e grupos informais, venderam ao PNAE um total de R$ 12,5 milhões. Até setembro deste ano, os mesmos coletivos venderam o equivalente a apenas R$ 900 mil, o que corresponde a vendas feitas antes das medidas de isolamento social.

“O que os dados indicam é que os recursos anualmente destinados pelo FNDE aos governos estaduais e prefeituras para a alimentação escolar não estão sendo utilizados, enquanto famílias passam fome”, afirma Mariana.

Dentre estes 53 grupos, 27 (51%) acessavam este mercado institucional há mais de cinco anos; 39 (75%) dos coletivos tiveram colheitas comprometidas e precisaram replanejar sua produção; e 28 (53%) disseram que houve desperdício de alimentos que seriam destinados ao PNAE.

Através de iniciativas de solidariedade e doação de alimentos, e também como forma de evitar o desperdício, 28 (53%) destes coletivos se engajaram em iniciativas de doação de alimentos.

Refletindo os dados acima, Naidison afirma: “Nota-se a queda violenta de ingressos das famílias agricultoras de um ano para outro, com repercussões negativas nas próprias instituições. Há muitos casos de pequenos grupos, formados por mulheres, que dependem do PNAE, uma política fundamental para a segurança alimentar e nutricional. Para o Semiárido, esta política é imprescindível para a produção de alimentos e a convivência com a região”.

Quando se olha para os 168 grupos produtivos, chama a atenção a falta de diálogo e de negociação do poder público com os agricultores e agricultoras. Apesar de 70% dos grupos produtivos estarem representados em conselhos municipais e/ou estaduais – como Conselhos de Desenvolvimento Local, Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e Conselhos de Alimentação Escolar (CAE) – dos 123 grupos que tinham contrato vigente para fornecimento de alimentos às escolas em 2020, apenas 50 (41%) foram chamados para renegociações.

Um caso grave e que será relatado na missão da Plataforma DHESCA é o do município de Remanso (https://www.asabrasil.org.br/noticias?artigo_id=11050&start=30), na Bahia. A prefeitura não tem adquirido os alimentos da agricultura familiar, mesmo com os contratos do PNAE vigentes em 2020. Com isso, a renda dos 13 grupos produtivos do município que participaram do levantamento, sendo a maioria com até 30 famílias integrantes, saíram de uma receita de R$ 630 mil em 2019 para zero em 2020.

Boas experiências

Apesar de toda este quadro de violação do direito humano à alimentação, há registros de municípios e estados no semiárido em que a gestão pública sustenta o compromisso moral com as famílias mais pobres.

É o caso do governo do estado do Rio Grande do Norte (saiba mais sobre a execução do PNAE no RN: https://midianinja.org/news/pnae-alimentacao-escolar-como-proposta-essencial-de-combate-a-fome/) e das cidades de Remígio, no semiárido paraibano, e de Morros, no semiárido maranhense. “Estas experiências mostram que é possível seguir fornecendo a alimentação saudável para as crianças e adolescentes a partir dos produtos da agricultura familiar. O que diferencia estes casos dos demais é só a vontade política”, pontua Mariana.

Fonte: Articulação Semiárido (ASA)

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